APMP finaliza campanha do Mês da Consciência Negra com entrevista do associado Eliezer Gomes da Silva

Confira relato do Procurador de Justiça do MPPR
30 de novembro de 2020 > Comunicação, Diretoria

Neste mês de novembro de 2020, a APMP, por meio da Diretoria de Comunicação, realizou  campanha sobre o Mês da Consciência Negra em suas redes sociais (FacebookInstagram e Twitter). Durante as 04 semanas de novembro, a Associação reuniu histórias inspiradoras de associados e associadas que atuam no Ministério Público do Paraná (MPPR). Suas trajetórias mostraram que representatividade importa e que é possível sim alcançar uma mudança na sociedade para que a igualdade racial no Brasil torne-se uma realidade.

Participaram da campanha Miriam de Freitas Santos, Procuradora de Justiça em Curitiba; Amanda Ribeiro dos Santos, Promotora de Justiça em Jaguapitã; Renato dos Santos Sant'anna, Promotor de Justiça em Centenário do Sul; Denilson Soares de Almeida, Promotor de Justiça em Curitiba; Leda Barbosa Lorejan, Promotora de Justiça em Arapongas; Dayane Santos Oliveira de Faria, Promotora de Justiça em Telêmaco Borba; André Luiz Querino Coelho, Promotor de Justiça em Matelândia; e, por fim, Eliezer Gomes da Silva, Procurador de Justiça em Curitiba, que compartilhou com a APMP, em um relato emocionante e inspirador, como foi sua história até chegar ao MPPR, qual foi sua maior inspiração para buscar a carreira, como enxerga o racismo no Brasil e como o Ministério Público pode atuar para acabar com o racismo estrutural. 

Confira abaixo a entrevista completa da APMP com o Procurador de Justiça, que nos ensina, com suas palavras e suas atitudes, como sermos antirracistas na prática, com ações que possam mudar o panorama da desigualdade racial no Brasil. 

APMP: Conte-nos um pouco da sua história até chegar ao Ministério Público?

Eliezer: Sou carioca, filho de um competente carpinteiro e de uma esmerada costureira, que migraram da Bahia para o Rio de Janeiro, no final dos anos 50. Com muito trabalho e determinação, e enfrentando múltiplos desafios em sua condição de pobres, negros, migrantes e órfãos, meus pais criaram condições para oferecer uma vida digna a seus três filhos e lhes incutir o valor do estudo, do trabalho, da solidariedade, e da observação crítica (sem perder a ternura) do universo social, político e econômico ao nosso redor.

Criado numa família em que nenhum dos parentes ou amigos próximos detinha formação superior, levei muito a sério a sábia orientação e o constante apoio dos pais, quanto à importância da educação, não apenas como ferramenta de mobilidade social, mas também para a melhor compreensão do mundo e da dinâmica das relações interpessoais. 

Tendo cursado o ensino fundamental em escolas municipais, entre Rocha Miranda e Irajá, subúrbios do Rio de Janeiro onde passei minha infância e adolescência, ao final do ensino fundamental obtive aprovação no Colégio Pedro II, no Centro do Rio, tradicional instituição de ensino público federal, fundada em 1837. Lá realizei todo o ensino médio e, imediatamente após, ingressei no curso de Letras (Português-Inglês) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um ano após, por bem acolhida sugestão dos pais, ingressei no curso de Direito, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 

Passei então a cursar, simultaneamente, ambos os cursos de graduação, ainda que vencendo, afora a enorme variedade de disciplinas, um desafio logístico. Sem carro, valia-me dos ônibus e das caronas de colegas e professores, para percorrer os distantes deslocamentos da casa para a Ilha do Fundão (sede da UFRJ, onde cursava as disciplinas do Bacharelado em Letras) e Botafogo ou Lagoa (outras subsedes da UFRJ, onde cursava as disciplinas pedagógicas da Licenciatura em Letras) e o Maracanã (sede da UERJ, onde cursava Direito). Em alguns dias da semana, em alguns anos, enfrentava aulas de manhã, à tarde e à noite, em lugares bem distantes uns dos outros. Conseguindo ser um bom aluno em ambos os cursos, concluí o Bacharelado e a Licenciatura em Letras na UFRJ, em 1987, e a Graduação em Direito na UERJ, em 1988, quando inclusive fui Orador da Turma, após vencer competição interna. 

Já formado em Direito, mas vendo reacender minha paixão pelos estudos da linguagem, acabei por obter aprovação no Mestrado em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concluindo meu primeiro Mestrado, com dissertação ao final voltada para a argumentação jurídica. E cada vez mais envolvido com o universo do Direito, com sucessivas aprovações em concursos públicos, antes mesmos de me graduar (no Rio cheguei a exercer, como servidor concursado, cargos na Justiça Federal, na Procuradoria-Geral do Município, na Justiça do Trabalho), acabei prestando concurso para o Ministério Público do Estado do Paraná. É que, à época, ao contrário do MP do Rio, o MP do Paraná não exigia experiência profissional de três anos, após a graduação.  Acolhido de braços abertos, pela instituição e pelo povo do Paraná, acabei por aqui ficando (embora sempre mantendo vínculos familiares com o Rio). Lá se vão quase 30 anos, completados no próximo mês de dezembro, de Paraná e de Ministério Público. 

Após atuar no interior do Estado (Arapongas, Engenheiro Beltrão, Morretes, Ivaiporã), cheguei a Curitiba em 1995, mesmo ano em que me casei com uma paranaense, com quem tenho dois filhos. No início de 1996, ao mesmo tempo em que fui aprovado para ingressar no Doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (mesmo sem um prévio Mestrado em Direito), fui também agraciado com uma bolsa do Governo Britânico, após vencer outro processo seletivo, para cursar o Mestrado em Criminologia na famosa Universidade de Cambridge. 

Para compatibilizar as oportunidades, cursei um semestre do Doutorado na USP, com deslocamentos semanais, sem prejuízo de minhas atividades como Promotor de Justiça, tranquei a matrícula no Doutorado e, após ver autorizado pelo Ministério Público pedido de afastamento para realizar o Mestrado no exterior (mais tarde revalidado pela USP e pela UFMG), ao retornar ao Brasil, no ano seguinte, dei continuidade a meu Doutorado em Direito na USP, sem novo afastamento de suas atividades do Ministério Público. Uma vez por semana pegava um avião, ao final da tarde, frequentava as aulas à noite e retornava de ônibus a Curitiba, durante a noite, para trabalhar no MP na manhã seguinte. 

Nesse longo e diversificado percurso de formação acadêmica, contabilizam-se, portanto, dois bacharelados, uma licenciatura, uma especialização (na PUC-PR), dois mestrados e um doutorado, em prestigiadas instituições de ensino, no Brasil e no exterior, contando sempre com o incentivo e suporte dos pais e, posteriormente, com o apoio institucional do Ministério Público.

Paralelamente à consolidação de minha formação acadêmica (e o exercício do magistério), já há mais de vinte anos me vejo envolvido em múltiplas, pioneiras e inovadoras atividades institucionais no âmbito do Ministério Público, algumas das quais ajudei a implantar e consolidar. Inicialmente no Centro de Estudos e Aperfeiçoamento funcional, quando criamos a matriz regulatória de auxílios financeiros para que outros membros e servidores do Ministério Público também pudessem se aperfeiçoar, e uma rotina de cursos e eventos abertos ao público externo, promovendo maior comunicação institucional. O projeto das teleconferências (em que alugávamos horas de satélite e um pequeno estúdio de TV para debater, ao vivo, temas jurídicos da atualidade), e a criação da Revista Direito e Sociedade podem ser aqui citados. Posteriormente, e sempre paralelamente ao exercício de atividades típicas de Promotor de Justiça (Promotoria do Patrimônio Público, Promotoria do Júri, Promotoria Criminal, Coordenadoria de Recursos Criminais), posteriormente presidi a Fundação Escola (FEMPAR), por quatro anos (no transcurso dos quais exerci a Vice-Presidência do Colégio Nacional de Diretores de Escolas do MP – CDEMP). 

Após voltar a exercer, agora exclusivamente, minhas atividades junto a Varas Criminais em Curitiba, fui chamado para novo desafio institucional, o de contribuir para implantar e consolidar não apenas uma nova Subprocuradoria (de Planejamento Institucional), mas toda uma cultura de planejamento estratégico no âmbito do MPPR.  Após três anos na SUBPLAN, tocando o projeto GEMPAR, enfrentei novo desafio de comandar (como principal gestor), e por um ano, a Subprocuradoria-Geral de Justiça para Assuntos Administrativos, onde também promovi ampla reforma em sua estrutura organizacional. Dali regressei à Coordenadoria de Recursos Criminais e, já promovido a Procurador de Justiça, voltei à administração superior, como Subprocurador-Geral de Justiça para Assuntos Jurídicos, função que exerci por quatro anos, até abril de 2020. 

Hoje atuo como Procurador de Justiça junto ao Terceiro Grupo Criminal e sou Professor concursado da Universidade Estadual de Ponta Grossa desde 2013. A UEPG teve recentemente aprovado, pela CAPES, novo programa de Mestrado em Direito, a ser implantado a partir de 2021, a partir de proposta cuja elaboração coordenei.  Sem contar que há anos, voluntariamente, colaboro com o programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Estadual do Norte do Paraná, em Jacarezinho. 

Portanto, nesses quase 30 anos de vinculação ao Ministério Público do Paraná, ao mesmo tempo em que obtive (e por isso sou muito grato) oportunidades de aperfeiçoamento acadêmico e profissional, sempre estive muito comprometido e empenhado em dar minha melhor contribuição possível nas diversas e desafiadores funções em que tive a confiança da instituição de exercer, assim como, nos últimos anos, venho envidados meus melhores esforços para a consolidação de diferenciadas áreas de ensino e pesquisa na pós-graduação em Direito, notadamente em universidades públicas do Estado. 

APMP: Qual foi sua maior inspiração para buscar a carreira no Ministério Público?

Eliezer: A possibilidade de realizar a justiça, sob múltiplos instrumentos. Concluindo o curso de Direito no mesmo ano em que o Brasil passou a ter uma nova Constituição, tão logo me deparei com tão variados horizontes de atuação do Ministério Público, em sede extrajudicial e judicial, na promoção de direitos públicos e de pessoas em situação de vulnerabilidade, e na busca de responsabilização, cível e criminal, em todas as frentes de interesse da sociedade, logo considerei constitucionalmente “abençoada” a carreira do Ministério Público. 

Pensem bem: que outra instituição de Estado, no Brasil e no mundo, tem constitucionalmente reconhecida esta condição de “essencial à função jurisdicional do Estado”, incumbida da “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, ao que se acrescenta a missão de “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição?” Trata-se, seguramente, da instituição da república de maior envergadura e flexibilidade institucional para a consolidação do estado democrático de direito, nas mais positivas repercussões desse conceito. Vejam só:

O MP não pode ser inerte (como deve ser o Judiciário), mas proativo, podendo e devendo tirar a Judiciário da inércia, sempre que considerar insuficientes ou inadequados ou diversos mecanismos de solução extrajudicial de conflitos, à disposição do MP.  Seus membros não exercem atividade política de cunho partidário, mas podem e devem cobrar a implementação de políticas públicas já definidas, ou mesmo a criação ou reorientação de políticas públicas mais consentâneas com o interesse público, seja no tocante às mais diversas áreas de interesse difuso ou coletivo, seja na proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade. Não exercem, fora do âmbito institucional, atividades e gestão pública, mas devem fiscalizar o bom exercício, pelos agentes públicos, de suas funções institucionais. Não criam leis, mas operam em busca de sua efetiva aplicação e aperfeiçoamento. Na área criminal, do inquérito ao Supremo, persegue seus objetivos de persecução penal, estando, no entanto, qualquer de seus membros, inteiramente à vontade, para eventualmente rever sua posição, em favor do acusado.  

Enfim, é verdadeiramente apaixonante (e motivador) poder atuar numa instituição cuja missão, visão e valores possam se confundir (sem que tenhamos de vencer dilemas interpessoais) com tudo o que você, como cidadão, almeja seja alcançado e respeitado.  Por isso, em minha atuação institucional, sempre tive consciência da alta responsabilidade que repousa nos ombros dos membros do Ministério Público: saber honrar a confiança historicamente delegada pela sociedade brasileira para, nos limites e possibilidades constitucionais e legais, promover o bem comum e, quando necessário, buscar reduzir ou reparar o mal ao que é mais caro ao público, à sociedade. Enfim, o MP é uma instituição de Estado, fiscal do particular e do próprio Estado, em tudo que se defina como da obrigação do Estado promover e respeitar.  Como cidadão, como acadêmico do Direito, como membro do Ministério Público, sou antes de tudo um fã do notável e inspirador desenho institucional do Ministério Público brasileiro, singular no mundo, e por isso capaz de internacionalmente inspirar reformas constitucionais em muitos outros países, notadamente na América latina, como, aliás, já debati e escrevi a respeito, inclusive em evento internacional. 

APMP: De que forma você enxerga o racismo no Brasil?

Eliezer: Interessante você perguntar sobre “enxergar o racismo no Brasil”, pois falar de racismo no Brasil é, infelizmente, para muitas pessoas, como escrever, a cada dia, um novo “ensaio sobre a cegueira”, em alusão à conhecida obra de José Saramago. É que embora o racismo seja um velho conhecido, no Brasil e no mundo, e tenha estado na base pseudomoral  ou pseudocientífica de sucessivos e abomináveis conflitos (a despeito da pungente gênese da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ao fim de um mundo destroçado pela Segunda Guerra Mundial – outra das muitas guerras de fundo étnico-racial), e de guerras particulares, do dia a dia, que consolidam situações de grave indignidade humana, que também ferem, matam e nos envergonham, ainda ouvimos brasileiros (aí incluídos agentes públicos) que não enxergam o racismo, que não enxergam a cruel realidade de nossa própria imperfeição como seres humanos de, no século XXI, sermos ainda capazes de considerar o outro como genuinamente inferior (numa espécie de sub-humanidade – e é disso que trata o racismo), especialmente pela cor de sua pele ou características atreladas a determinado segmento étnico-racial. 

Portanto, se por racismo se entende uma firme crença (às vezes até uma irracional e odiosa convicção) de que alguém pode ser tratado de forma subalterna, porque, por traços fenotípicos que o vinculam aos afrodescendentes, merece tal tratamento, é necessário não limitar o conceito de racismo a explícitas, brutais e grotescas manifestações dessa forma de inferiorização de seres humanos. A denúncia, a investigação, a persecução e, se for o caso, a punição, dos episódios de motivação racial explicitamente racista são, sem dúvida alguma, da máxima importância, mas é  igualmente importante a denúncia, a investigação das situações objetivas em que esse tratamento negativamente diferenciado se faz presente, para que sejam promovidas as medidas necessárias para a remoção de desigualdade estruturalmente identificada. Isso está no cerne do que costumo distinguir, em palestras e escritos sobre racismo, entre o racismo como caso de polícia e o racismo como caso de política. Ambas são situações de racismo, que se alimentam reciprocamente. 

Por ignorância ou por má-fé, a negação do racismo no Brasil muitas vezes aparece na forma de identificação do racismo tão somente à luz dos episódios de inferiorização mais explícitos (os casos de polícia) exatamente para, marcando-as como episódios perpetrados por algumas “maçãs podres” de um “cesto” de cidadãos justos, fraternos e solidários, consolidar a conclusão de que não precisamos nos preocupar com uma agenda de políticas públicas em prol da promoção da igualdade racial. Bastaria a simples criminalização (ao fim e ao cabo ressignificada, quase sempre, como situação de injúria racial) para se “restaurar” o equilíbrio perdido.  Essa sutil e perversa estratégia de negar o racismo estrutural (vale dizer, as estruturas que mantêm, na prática, os efeitos de uma visão racista das relações sociais), limitando-o, tão somente, às explícitas manifestações raciais intersubjetivas, embute um conservador negacionismo, que faz perpetuar o racismo.

Nesse contexto, provoca-me profunda indignação quando, em pleno Dia da Consciência Negra, nos deparamos com falas de agentes públicos da importância de um Presidente da República, de um Vice-Presidente da República, negarem a existência do racismo no Brasil. Ora, enquanto as estatísticas demonstrarem que negros, quando não desproporcionalmente assassinados, possuem os piores indicadores em termos de acesso ao trabalho, à saúde, à educação, à habitação, de proteção contra a violência, entre tantas outras frentes, é evidente que a sociedade brasileira se mantém estruturalmente racista. E não enxergar o racismo nas condições estruturantes da vida dos negros no Brasil (muito longe de um ideal de igualdade de oportunidades – ou de proteção) é, sem dúvida, contribuir para a perpetuação do racismo, neutralizando o que a Constituição, as leis, as convenções internacionais de há muito obrigam o estado brasileiro a enfrentar.

Lá se vão mais de cinquenta e cinco anos de aprovação, pela Assembleia Geral da ONU, em 21 de dezembro de 1965, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial; mais de dezenove anos da emblemática Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban, África do Sul, em 2001, onde restou aprovada importante Declaração e Plano de Ação.  E ainda hoje continuam os sistemas regionais e internacional de direitos humanos conclamando os diferentes Estados para a efetiva implementação interna das diretrizes, resoluções, recomendações e decisões dos fóruns e organismos internacionais, em prol da igualdade racial. Aliás, parte dos esforços dos sistemas internacional e regional de direitos humanos tem sido o de lembrar, com ênfase, que a responsabilidade básica pelo efetivo combate ao racismo, à discriminação racial e pela promoção da igualdade racial pertence aos próprios Estados, aos quais cabe a integral e efetiva elaboração de planos que busquem a efetiva implementação dos compromissos e das recomendações assumidas. 

Em suma, apesar de antiga a chaga do racismo como algo incompatível com a existência humana civilizada, lenta tem sido, especialmente no Brasil, a efetiva implementação de políticas públicas e ações institucionais voltadas tanto para o combate ao racismo quanto para a promoção da igualdade racial, eixos de atuação distintos, porém mutuamente complementares. Muitos ou não se deram conta ou querem permanecer cegos (e, como diz o ditado popular, o pior cego é o que não quer ver) quanto à urgente necessidade de promoção da igualdade racial, para além da repressão a episódios individuais de racismo e discriminação. Muitos ainda se veem presos (e querem aprisionar tantos outros) a essa verdadeira “armadilha brasileira” da cegueira ao racismo estrutural, não raro limitando sua dimensão ao racismo interpessoal. 

APMP: Como o Ministério Público pode atuar para acabar com o racismo estrutural?

Eliezer: Exigindo (com o mesmo empenho que tem se dedicado na promoção e defesa de tantas áreas de proteção e defesa de direitos fundamentais, e com todo o rico manancial de instrumentos extrajudiciais e judiciais a sua disposição), o cumprimento das leis, da Constituição, das convenções internacionais. Já é mais do que chegada a hora de o Ministério Público ultrapassar a fase (ainda que importante) de sensibilização para a questão racial, para incorporar um programa de vigilância, de monitoramento e de consequentes ações práticas. Insisto: não basta promover denúncias criminais por atos de racismo, mas atuar (com o olhar atento para a promoção da igualdade racial) em todas as áreas de promoção da igualdade de direitos e oportunidades que já bem desenvolveu em diversas áreas.

Sob tal perspectiva, penso que a atuação do Ministério Público, em termos de promoção da igualdade racial há de se dar em caráter transversal, perpassando e se integrando com a atuação do MP em áreas como direitos humanos, saúde, educação, consumidor, habitação, meio-ambiente, pessoas com deficiência, orçamentos públicos, fundações, igualdade de gênero, idosos, habitação, urbanismo etc. É que o recorte racial (assim como o recorte de gênero), porque elemento constitutivo dos diversos aspectos da vida brasileira, deve ser pensado, em termos de ação institucional do Ministério Público. Creio ser inevitável essa estratégia transversal e prismática de atuação do MP nessa área, reinventando, de modo inovador, modelos de atuação institucional. 

Já tive a oportunidade de pessoalmente contribuir, em distintos momentos de minha carreira do Ministério Público, para o debate nacional em termos de atuação do Ministério Público, tanto no que se refere à persecução penal do crime de racismo, quanto no que tange à importância da promoção da igualdade racial. 

Quanto ao aperfeiçoamento da legislação penal antirracista, é digno de nota que, ao aprovar, em 21 de outubro de 2006, o relatório de n. 66/06, no caso Simone André Diniz (oriundo de denúncia do Brasil perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a partir de um anúncio de emprego publicado no jornal  Folha de São Paulo, em 02/03/97, em que se buscava empregada doméstica branca), a Comissão, embora concluindo que o Estado brasileiro violara dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos, absteve-se de encaminhar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos por versar a denúncia sobre fatos ocorridos em 1997, portanto em período anterior à aceitação, pelo Brasil, da competência contenciosa da Corte (10 de dezembro de 1998). Não obstante, ao aprovar o relatório, a CIDH reiterou recomendações ao governo brasileiro, já lançadas quando da aprovação, em 28 de outubro de 2004, do relatório n. 83/04. No citado relatório a Comissão cita um estudo escrito por mim, em conjunto com o colega e amigo Ivonei Sfoggia (até recentemente Procurador-Geral de Justiça), em que abordávamos as crônicas imperfeições da antiga e casuística redação da Lei 7.716/89 (“Lei Caó”). Apontamos, no artigo, a necessidade de maior abertura do tipo penal, para dar conta da multiplicidade de manifestações do racismo interpessoal. 

Embora publicado em 1997 na antiga Revista Igualdade, do Ministério Público do Estado do Paraná, nossa reflexão havia sido originalmente apresentada como tese no XI Congresso Nacional do Ministério Público, realizado em Goiânia, em 1996, portanto antes da alteração da Lei 7716/89 pela Lei 9459, de 13 de maio de 1997.  Em razão da apresentação do referido trabalho pelo Ivonei em Goiânia (naquele ano eu estava na Inglaterra, cursando o mestrado em Criminologia), fomos convidados a participar do evento “Ao vivo e a cores – Seminário de Direito e Relações Raciais no Terceiro Milênio”, promovido pelo Movimento Negro Unificado e Ministério Público do Estado da Bahia e realizado em Salvador,  em  março de 1997, do qual participou Ivonei Sfoggia, discutindo nosso texto conjuntamente elaborado, que chamara a atenção no aludido Congresso Nacional.   

No painel “Alternativas legislativas face ao racismo”, junto com Ivonei, também participaram os Deputados Federais Luiz Alberto Santos Silva (então Coordenador do Movimento Negro Unificado e Deputado Federal pela Bahia) e Paulo Paim (então Deputado Federal pelo Rio Grande do Sul e membro da Mesa Diretora do Congresso Nacional).  Coincidência ou não, a Lei 9459/97, em harmonia com a nossa tese, redefiniu o artigo 20 da Lei 7716/89, criando um tipo penal mais aberto, suscetível de abarcar a miríade de imprevisíveis materializações de racismo (vide artigo 20 da Lei 9459/97), sendo que a Lei n. 9459/97 quanto a Lei 12888/2010 (Estatuto da Igualdade Racial) tiveram como autor o Deputado Federal, e posteriormente Senador da República, Paulo Paim. 

No que toca à reformulação da atuação institucional do MP em prol da promoção da igualdade racional, é também de se registrar que em agosto de 2010, alguns meses após a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, fui convidado a participar de um painel (“A desigualdade racial no Brasil: estado atual”), em meio a seminário promovido pelo CDEMP, que se reunia em Curitiba. Na ocasião, tive a oportunidade de discorrer sobre o tema e ao final da apresentação, propor um conjunto de dez eixos programáticos de ação, pelo Ministério Público, para efetiva implementação do Estatuto da Igualdade Racial. Chamava a atenção (e continuo chamando a atenção até hoje) para o fato de que o Estatuto, de modo inovador, trata a desigualdade racial como matéria de interesse coletivo, difuso, a envolver políticas públicas e práticas sociais voltadas ao enfrentamento de situações de injustificada diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada,  em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, não se limitando à atuação reativa, pontual em relação às discriminações raciais ou étnico‐raciais diretas.

As conclusões e proposições daquela apresentação foram formalmente acatadas pelo CDEMP, que generosamente as incorporou em sua “Carta de Curitiba pelo pronto envolvimento do Ministério Público na implementação do Estatuto da Igualdade Racial (lei 12288/2010)” e, mais tarde, referendada pela CONAMP e pelo CNPG. Na ocasião, sugerimos 10 (dez) linhas de ação institucional do Ministério Público em prol da efetividade da lei 12288/2010, a saber:

I) Criar estruturas funcionais permanentes e multidisciplinares, não apenas para o combate às discriminações raciais ou étnico‐raciais diretas, mas para as ações de redução das desigualdades raciais e do preconceito étnico‐racial e suas interfaces com as questões de gênero; 

II) Criar e implementar sistema permanente de monitoramento de indicadores socioeconômicos, de modo a identificar, nos planos locais e regionais, situações de desigualdade racial;  

III) Adotar as medidas de caráter extrajudicial e judicial (notadamente ações civis públicas, especificamente previstas no artigo 55 do Estatuto), voltadas ao enfrentamento do quadro de desigualdade racial apontado pelo monitoramento dos indicadores socioeconômicos, aí incluídas as iniciativas visando à inserção, nos orçamentos públicos, de rubricas destinadas a programas de ação preconizados no Estatuto;

IV) Fomentar a instalação, em todos os municípios, de Conselhos de Promoção de Igualdade Étnica, previstos no artigo 50 do Estatuto; 

V) Promover maior aproximação com organizações e movimentos sociais, com atuação voltada para a defesa da igualdade racial, não apenas realizando audiências e consultas públicas, como estabelecendo uma regular sistemática de encontros e reuniões de trabalho, de modo a colher subsídios para as intervenções do Ministério Público em prol da redução da desigualdade racial; 

VI) Adotar, independentemente de expressa determinação legal, ações afirmativas para ingresso de membros e servidores nos quadros do Ministério Público do Brasil;

VII) Estabelecer indicadores e metas que garantam maior participação da população negra no provimento de cargos em comissão e funções de confiança, na forma preconizada no artigo 42 do Estatuto;

VIII) Qualificar membros e servidores do Ministério Público em tema de relações raciais, ante a premissa de que um maior conhecimento da dinâmica das relações raciais no Brasil trará maiores subsídios para identificar situações de desigualdade e vislumbrar as estratégias mais eficientes para seu enfrentamento; 

IX) Empreender constante sensibilização, de membros e servidores do Ministério Público acerca das questões de cunho racial e suas interfaces com as questões de gênero, e apoiar, nos espaços institucionais internos, campanhas e iniciativas promovidas por outras instituições, voltadas à redução da desigualdade racial; 

X) Promover a inclusão, nos programas dos concursos para ingresso de membros e servidores nos quadros do Ministério Público de tópicos relacionados ao estudo das relações raciais e estimular que as Escolas do Ministério Público promovam, com regularidade, atividades relacionadas à referida área de estudos. 

Claro que esses 10 (dez) eixos de ação (que evidentemente não pretendem exaurir o vasto campo de atuação institucional do Ministério Público em tema de igualdade racial), procuram se harmonizar com a natureza programática do Estatuto da Igualdade Racial (do que muitos ainda não se atentaram) e procura situar o Ministério Público em seu melhor papel institucional, de instituição republicana, sinceramente comprometida com a materialização dos direitos fundamentais e da democracia e a consolidação de uma sociedade livre, justa e solidária. 

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